quarta-feira, 12 de julho de 2017

Uma homenagem à Área

A tragédia já havia sido anunciada. Os três companheiros estavam bebendo em uma mesa de bar e lamentando o ocorrido. Não acreditando na notícia que tinham recebido. O baixo astral era nítido em todos.Um deles até escreveu em suas redes sociais '#luto'. Como se um parte do corpo fosse retirada. Sem consentimento deles.

Edgar havia convocado seus amigos de longa data, Euclides e Epaminondas, para uma reunião de emergência. Mal sabiam os dois do que se tratava.

Os três se conheceram quando cursavam a sétima série. Uma nova escola tinha sido inaugurada na cidade e eles caíram na mesma sala formando uma amizade que perdura até os dias de hoje.

Nas primeiras semanas, os três ficaram durante o intervalo em um pequeno espaço da entrada do colégio. Não era escondido. Estava a vista para todos.Era um assento cinza e do lado de uma sala de aula. Gostaram tanto que se apoderaram do local.

Conforme passou o tempo viram que não tinham concorrência de outras pessoas e disseram que aquela área era deles. Fincando uma bandeira abstrata e proclamando: "A Área é nossa"!

Área! O nome pegou! Estava feito o batizado.

Religiosamente, Edgar, Euclides e Epaminondas estavam lá de segunda à sexta-feira. Durante dois anos. Depois, foram para o outro prédio da escola que abrigava o ensino médio.

A Área formou o caráter dos até então jovens estudantes.

Começaram a assinar seus nomes por alguns cantos dela. Usavam uma chave para furar o assento cinza e fazer desenhos obscenos. Atitude de moleque.

Quando estavam lá, comentavam sobre algum professor que não gostavam, aulas chatas e entediantes, algum coordenador que era muito rígido com os alunos, sobre garotas (bonitas e feias), fatos do cotidiano e por aí vai.

Debochavam de palhaçadas que aconteciam em sala como em um trabalho de história em que houve um ataque de riso em todos. Na ocasião, fizeram o trabalho com um menino aplicado da classe (Eusébio) e este insatisfeito com o desempenho dos três, deu uma bronca histórica. Usou um linguajar de tio dando advertência em sobrinhos. Edgar teve um ataque de riso. Não se conteve na hora de apresentação, o que atrapalhou o andamento da mesma.Todos do grupo riram muito. Foram contaminados pelo excesso de riso. O professor e o restante da classe não entendiam o que havia ali de tão cômico.

Ao final, sem ninguém compreender o conteúdo e o motivo de tanto riso, o professor que era um anjo deu nota 7!!! A real é que mereciam um 0.

"Galera,o que foi aquela apresentação (risos)? Edgar,você não parava de rir. Depois fomos para a Área e ríamos ainda mais da bronca do Eusébio. Minha barriga doía de tanto rir.  Até então acho que nunca tinha rido tanto na minha vida", disse um já embriagado Euclides e se divertindo com a recordação.

Voltando ao período em que eram jovens,era na Área que debatiam sobre futebol, procuravam conhecer novas bandas e falavam de vários filmes. Fora outros entretenimentos.

"Foi lá que conhecemos bandas novas. Sabíamos todas as formações do Iron Maiden. Cada música de cada CD. Ano em que foram lançados.Levávamos discman e ficávamos escutando  álbum por álbum deles. A gente se revezava nos fones. Essa molecada não sabe o que é passar por isso. Baixa um porre de música e está ouvindo tudo nesses programinhas de celular que nem sei o nome. Eles nem sabem o nome da música e nem os álbuns",emendou Epaminondas, mostrando ser da boa e velha escola.

"Foi lá que decoramos todos os campeões ano a ano do Campeonato Brasileiro e da Libertadores. Sabíamos de cor. Não era fácil.Tínhamos que perguntar para parentes e consultar revistas e jornais antigos para ter essas informações. Hoje está tudo na internet", recordou Edgar.

"Levamos um bom tempo nosso na Área para saber os campeões ano a ano e hoje a CBF incluiu os campeões de Taça Brasil e Robertão como campeões brasileiros e hoje não sei mais nada. Bagunçou tudo", emendou Edgar.

O local sagrado servia também para matar algumas aulas. Principalmente aquelas no período vespertino. Sempre mais próximas do final de semana e que não serviam para muita coisa. Ao menos para alguns meninos que estavam em outra 'vibe' da vida.

"Era incrível como as pessoas sabiam que aquele lugar era nosso. Íamos comprar lanches e quando chegávamos na Área, as pessoas que estavam lá (quando tinha) se retiravam. Era um respeito que impomos sem sujar as mãos e nem derrubar sangue. Ninguém nos importunou naqueles dois anos de Área", disse em palavras bonitas um boêmio Epaminondas.

Durante esse período em que se apossaram do território, houve ali mesmo no assento uma pequena colmeia . A criação se iniciou em um período de férias escolar. Ao retornarem para o segundo semestre a primeira novidade que notaram foi o enxame.

Não eram abelhas grandes. Eram pequenas. Quase de estimação. Os rapazes as criavam. Não queriam que fizessem mal a elas

Como terminou a história das abelhas? Como elas sumiram? Nenhum dos três recordava mais. Naquela altura da noite, foi-se apenas um brinde pelas abelhas.

"Quem não lembra da aula de artes em que teríamos que fazer um desenho que posteriormente seria posto na parede da escola para sermos lembrados como os primeiros alunos? De onde surgiu a ideia dos desenhos? Foi na Área! Acabamos desenhando o Eddie, do Iron Maiden, no single `Can I play with madness. Vocês desenharam, né? Eu nunca desenhei porra nenhuma", disse Edgar, já com uma voz embriagada.

Desenho que era para estar na parede de uma escola! Era!

Os outros dois riram. Lembraram que o único grupo que teve dois desenhos reprovados (o outro foi um do `Bob Cuspe fumando) foi o deles. Eram considerados uma afronta a moral e os bons costumes da sociedade. No fim, nem os aprovados e nem os reprovados foram para as paredes.

"Ficamos horas e horas na Área desenhando aquelas merdas. Achamos que ia dar certo. Deu porra nenhuma", relembrou Euclides.

Naquela altura da noite, depois de várias bebedeiras  e lamentações, uma lágrima escorre do olho de Edgar. Isso emociona os outros dois presentes na mesa.Ambos consolam o companheiro.

"Poxa (voz de choro)...saímos da cidade. Fomos morar fora do país. Longe para cacete. A Área ficou abandonada (mais choro). Se soubesse que iam liquidá-la, juro que faria de tudo para impedir. Algum protesto. Um acampamento na Área. Devíamos montar  três barracas para impedir a destruição. Era patrimônio nosso. Devíamos ser consultados", falou lacrimejando um embriagado Edgar.

"Eu viria lá do outro lado do mundo. Lá da puta que pariu para impedir essa demolição. Faria um 'live`pelas redes sociais e mostraria toda a injustiça com a Área.Faria textão na internet.Eu iria ganhar muitos cliques, compartilhadas, curtidas, seguidores e apoiadores da causa", emendou Euclides.

"Queria ver me tirar de lá. Impediria os pedreiros de trabalharem. Atrapalharia mesmo o serviço deles. Não estaria nem ai. Só sairia de lá algemado e olhe lá. Aquele lugar era um pedaço da minha casa. Era meu porto seguro", desabafou Epaminondas.

"No lugar da Área fizeram uns banquinhos mó coloridos. Tem escorregador ali por perto também. Tudo bonitinho, organizadinho.Chamativo! Era legal na nossa época. O bagulho era cinza, sem capricho nenhum.Tudo com desenho obsceno. Abelha em volta. Era 'old school'mesmo. Agora tudo tem que ser moderninho.Demoliram sem dó nem piedade. Na nossa época era muito,mas muito mais legal. Não dá para engolir", disse um traumatizado Edgar ao relembrar quando perambulou pela última vez perto do local em que estudou.

"Não temos nem foto. Nenhuma sequer, "continuou Epaminondas.

"Máquina fotográfica era objeto para adultos e muito caro. Diferente de hoje que qualquer pirralho de 2 anos já sai fazendo a tal selfie. Imagino essa geração na escola fazendo altas selfies com aqueles banquinhos, escorregadores e postando tudo em rede social. Que coisa patética! Fico com vergonha alheia só de imaginar que isso acontece. Essas crianças mal sabem o passado glorioso que está enterrado ali", seguiu um agoniado e dramático Edgar.

Mais um brinde se seguiu pela falecida Área.

"Eu já me conformaria em ter um pedaço da área como recordação. Já que fotos não há. Podiam ter nos ligado e avisado que estavam demolindo. Nem isso fizeram. Acho que nem na hora da reunião alguém lembrou da gente. Eu gostaria de ter um pedacinho de cimento e hoje certamente estaria na sala. Bem no centro. Podia pegar onde estava assinado meu nome", opinou Euclides.

Na sequência chega o garçom e fala que a casa esta encerrando o expediente e questiona-os se poderia trazer a saideira.

Nisso, Edgar chorando começa a contar toda a história ao garçom, que preocupado em fechar o estabelecimento, chegar em casa, fazer afazeres domésticos e cuidar dos filhos, não se comoveu. Apenas pediu calma (de forma protocolar) e trouxe as bebidas.As últimas da noite. Já madrugada para ser mais exato.

Enquanto bebiam mais uma caneca de cerveja (a conta de quantas foram havia sido perdida), o estágio etílico atingia o nível raivoso e pensamentos agressivos foram postos para fora.

"Juro que se eu encontrar o diretor daquela escola  dou um soco na cara dele. Quero ver ele deitado no chão e vou falar umas boas verdades para ele. Alguém sabe onde esse folgado mora?", prometeu um raivoso Euclides.

"Ele deve tá mó velhinho. Deixa quieto. Vai matá-lo só na ameaça do golpe", ponderou um calmo Epaminondas.

"Foda-se. Ele tem que se foder mesmo. Não sabe com quem mexeu", retrucou um esbravejado Euclides.

Enquanto o recinto estava fechando o expediente, o gerente pergunta aos garçons se sabiam o motivo de tanta choradeira e revolta na única mesa que restou no bar.

"Pelo que eu entendi, eles estudaram juntos numa escola e houve reformas no pátio.Algo assim.Eles não gostaram. Disseram que não parece bem com o tempo em que eles estudavam lá. É por aí, chefe", resumiu, muito resumido um dos funcionários.

"Olha eu já vi choradeira por vários motivos aqui. Briga de amigos, por problemas com família, namoradas, dinheiro, trabalho, mas esse motivo é a primeira vez que escuto", disse um surpreendido gerente.

Na sequência, um garçom aborda os três amigos e passa a conta.

"Não queremos a conta. Queremos a Área de volta. Nossa Área. Que saudade!!!", implorou e gritou Edgar.

O garçom apenas sorriu e pediu, por gentileza, que acertassem o que deviam.

Como bons embriagados, se atrapalharam na hora de pegar o dinheiro. Demoraram para somar quanto seria dividido para cada um.

"Demoramos...éeee...demo-ra-mos...mas conseguimos. Estáaa aqui, me-me-meu ca-caro", falou Edgar, em tom gago e mal raciocinando.

Se despediram do bar e cambaleando, um abraçado no outro, saíram do local.

Já perto de seus respectivos automóveis, Euclides chama seus dois amigos e manda um recado:

"Quero que vocês lembrem do seguinte. A Área fisicamente não existe mais. Não.....não tem mais o que fazer. Não tem. Já era. A Área jaz. Descansa....descansa....mas...não esqueçam que ela ainda vive. Sim...vive em nossos corações. No meeeeuu...no seeeu (bate no peito de Epaminondas) e no seeeu (bate no peito de Edgar). Vamos falar sempre dela para tooooodo mundoooo", discursou, já bem atrapalhado na fala.

"É.....é.....foi a nossa despedida da Área. Como ela merecia.....com muiiita....muiiita cerveja", emendou Edgar.

"Vou ver se essa semana passo lá perto...mas acho difícil. Tenho medo de me abalar psicologicamente. Sei que o choque vai ser grande", finalizou Epaminondas.

Antes de partirem, Euclides sugeriu 1 minuto de silêncio para a Área. Foram 60 segundos respeitadíssimos. Sem fala e com lágrimas nos olhos.

Enfim, bem tarde da madrugada os três foram para suas respectivas residências. No dia seguinte, acordaram (com aquela ressaca) e foram trabalhar. Apesar de tudo, a vida segue.

Obs: história inverídica baseada em fatos reais,com altas doses de exagero e drama. 













terça-feira, 4 de julho de 2017

Encontro da galera? Só em velório?

Geraldo aproveitou o horário de almoço do trabalho para resolver assuntos pessoais. Após passar no banco e em algumas lojas, já retornando para o local de seu emprego, encontrou um antigo amigo em uma praça da cidade.

Foi cumprimentá-lo, pois havia algum tempo que não o encontrava. Entretanto, esperou Luiz terminar de falar no celular. Estamos na era em que os telefones móveis são prioridade em nossas vidas.

Passados alguns minutos:

- Geraldo!! Quanto tempo!! Voltou pra cidade? Dá um abraço!

- Luiz, como você está?? Sim...voltei.... estava sem emprego e arrumei um por aqui.

- Você falou emprego? Acabei de arrumar um!! Estava no telefone acertando os detalhes. Já fazia um tempo que estava desempregado.

- Meus parabéns!! Ninguém merece ficar desempregado. Senta aí, vamos conversar. Tem tempo?

- Um pouco. Vamos aí.

Enfim acomodados, colocaram as novidades em dia. Começando pela fisionomia de ambos, que, embora se reconhecessem, já estavam com cabelos grisalhos, barbas mal-feitas, óculos e até uns quilos a mais em relação ao período da adolescência onde formaram uma grande amizade.
Crédito: divulgação 

- Geraldo, esse banco aqui lembra muito aquele perto de casa onde a galera se reunia para trocar ideia, não acha?

- Sim (risos). Dá aquela nostalgia. Todo fim de semana era 'lei'se encontrar naquele banquinho.Você ainda costuma sair à noite?

- Sim. Menos que antes. O círculo de amizades é menor, a galera não tem muito tempo para sair e sem grana fica difícil. E você?

-  Quando dá eu saio sim. O foda hoje são as ressacas. Muito piores que quando éramos adolescentes. Antigamente bebia e no dia seguinte era só uma dorzinha de cabeça que logo passava. Hoje é dor de cabeça, de estômago e vômito. Dura um dia inteiro!!! Tem que escolher quando beber para não se prejudicar no trabalho. Mas o pior é a ressaca financeira. Quando vemos a carteira vazia e temos que conferir o quanto sobrou no banco. Essa ressaca é terrível e demora meses para passar", opinou Geraldo.

- Pode crê (risos).

Durante a prosa relembraram alguns causos de quando eram jovens. Lembraram do período em que suas preocupações eram baladas, conhecer bandas e músicas (algo difícil atualmente pelo pouco tempo que tem. Ouvem mais ou menos os mesmos grupos de 20, 30 anos atrás), viagens (que se tornaram raras em tempos de crise e desemprego) e outras 'futilidades' da adolescência. 

-  Ah, Luiz..faz tempo que você não tem notícias do João, do Joaquim, do Zé, do Lúcio ou qualquer camarada daquela época? Tem encontrado com algum deles?

- Tenho contato deles no Facebook e no Whatsapp, mas nem nos falamos.Sei que teve uns que casaram mais de uma vez, outros moram fora do país, um ou outro ficou rico. Sei que tem gente que vive na rua. Mas não acompanho muito eles nas redes sociais. Nem sei o que postam e pensam.

- Eu também.

-  A última vez que vi todos esses caras, mais uma galera daquele tempo, foi no velório do Abel. Isso há três anos. Foi a última vez em que estava quase todo mundo reunido.

- Pois,é. Isso é um sinal de que estamos velhos. Encontrar toda a galera agora só em velório. Quem diria!? Antes juntar o povo e ir pra balada, bar ou fazer um churrasco na casa de alguém era fácil. E era uma época que não tinha internet. Hoje tem que combinar com antecedência para todos poderem ir. Se forem. Não é simples! Uma pena o velório ser o modo mais fácil de encontro de uma turma.

- Bem, observado Geraldo. Viu, preciso ir agora. Você tem meus contatos, vamos combinar uma hora de sair.

- Valeu, cara. Bom te ver. Preciso voltar ao trabalho. Vamos combinar sim. E que não fique só no papo. Vamos arrumar um tempo. Pra se divertir. Não um velório! Um abraço. 

- Abraço.

Obs: história inspirada em fatos reais